sexta-feira, 22 de março de 2013

Minhas Costas Doem

- Dôtora, eu vim aqui hoje porque eu tenho uma dor nas costas, fia de Deus, 
que num melhora com nada nesse mundo! 


Minhas Costas Doem

Doutor, minhas costas doem
De todo o peso que eu carrego do mundo
Eu ajudava meu pai na feira
Carregando tanta caixa de fruta

Doutor minhas costas doem
Meu pai ficou doente e o carreguei nas costas
Doutor minhas costas doem
Meu pai se foi e eu carrego o peso da solidão

Ah, Doutor enxerga essa dor no peito que irradia da alma
Ah, Doutor enxerga que essa dor no peito irradia da alma

Doutor meu coração,
Ultimamente anda batendo tão fraco
Doutor não chove não ,
E essa seca vai rachando por dentro meu coração

Ah, Doutor enxerga essa dor no peito que irradia da alma
Ah, Doutor enxerga que essa dor no peito irradia da alma

Doutor,  vou indo agora
E me perdoe por gastar suas horas

Doutor, suas costas doem?
Doutor, suas costas doem?
Doutor, suas costas doem?



quarta-feira, 20 de março de 2013

Boi com sede bebe lama

“O desespero
No olhar de uma criança
A humanidade
Fecha os olhos pra não ver

Boi com sede bebe lama
Barriga seca não dá sono
Eu não sou dono do mundo
Mas tenho culpa, porque sou
Filho do dono”
Filho do Dono – Petrúcio Amorim

Sexta-feira, onze e meia. Papéis, caneta, carimbo, tudo em ordem, estou fechando minha mochila. O estetoscópio ainda está sobre os ombros. Doutor, ligou um Agente Indígena de Saúde, disse que tem uma criança lá na aldeia “só respirando”, mas não é da sua área, o senhor pode atender? Posso, claro.

... Está demorando, não? Não se preocupe, Doutor, na maioria das vezes é besteira. Estou ansioso, mesmo assim... Vou ler um pouco, para distrair... O Acaso é um bicho engraçado, nesse dia estava com um livro de meu professor, amigo e companheiro, na mochila. As palavras escritas naquelas linhas falavam de política, mas eu lia, em verdade, eu escutava ele me dizendo: mantenha a calma, da sua segurança depende a vida do paciente... era como se ele estivesse ali, a ansiedade diminuiu. É, estar acompanhado de um amigo nos traz paz.

Doutor, o menino “tá roxo”. O que tá acontecendo? Ele taí mole dotô. Calma, mulher, como ele está e desde quando? O minino tá sem querê cumê e mole, derde sanoite. Ele teve febre ou tá fazendo cocô mole? Hem-hem. Tem certeza que não? E ele está “mole” só faz um dia? Ele é assim mermo. Qual a idade dele? Cinco meise. Tudo isso? alguém pesou ele, ele é tão pequenininho. Três quilos e seicentos, doutor. Meu Deus!

Coloque ele nessa mesa e tire a roupinha.
A criança está largada na mesa de exames, o pescoço virado para direita. Olhar no vazio. Um olhar desesperado, de quem sequer consegue chorar para pedir socorro
Fontanela deprimida.
Olhos fundos, encovados.
Ele respira, mas muito rápido.
Sua pele está quente e enrugada.
Sua barriga, escavada. Sobra-lhe pele. Uma palpação leve e escorre uma evacuação amarelada, líquida e muito fétida.

A senhora disse que ele não estava com diarreia! Que não fazia cocô mole. Far tempo que o cocô dele é assim, dotô. Me dou conta que, nessa hora, culpar a mãe não ajuda em nada.
Faço uma prega no abdome, mas a pele não desfaz aquela prega.

Ele está mamando? Hem-hem. Parou quando? Cum treis dia. Por quê? Num tinha leite no meu peito.
Quantos anos você tem? Dizessei. Só tem ele? Nã, tem um de doi ano e tô esperando oto. O que é que você está dando para ele comer? Mamadêra, eu dirmancho o leite e ele toma. Fir essa mamadêra onti, mar ele num tumô nada. Doutor, pelo amor de Deus! Um cheiro azedo se espalha pela sala. Na mamadeira, sobrenada uma grossa camada de leite “talhado”, encimado por bolor.

Não, não sou médico sem fronteiras. Nem esta situação aconteceu na distante África. Esse atendimento se deu há menos de um mês, no interior de Pernambuco. Infelizmente a humanidade continua “fechando os olhos para não ver”. Não ver que as doenças prevalentes da infância continuam sendo negligenciadas, principalmente quando acometem minorias. Não ver que elas continuam ceifando os dias de “uma vida toda pela frente”.

O desespero no olhar daquela criança está fotografado em minha retina. Não consigo lembrar daquela cena sem embargar a voz, sem encher os olhos de lágrimas. Não adianta, “meu coração é de sangue e ele sangra”.

Iniciamos o tratamento, em seis horas a criança começa a melhorar. Despertou, já consegue beber água avidamente, alimenta-se. Mas sua diarreia continua. Em 24h continua cansada, taquipnéica. Encaminhada para o hospital de referência, é internada em leito intensivo. Após sete dias na UTI, vem a notícia. Seus pequenos rins não suportaram, sua luta desesperada chegou ao fim. Descansa em paz, o pequeno índio, nos braços do Rei do Ororubá.

Nós temos uma tendência incrível a procurar culpados, e essa inclinação é muito maior para encontrar o argueiro nos olhos dos outros. “Essa mãe é um a irresponsável”! Hipócritas, não sabemos tirar a trave de nosso próprio olho! Já diz a letra da música que inicia esta crônica: “eu não sou dono do mundo, mas tenho culpa porque sou filho do dono”. Tenho culpa na hora que oriento de forma superficial o aleitamento materno, tenho culpa na hora que identifico uma criança de baixo peso, notifico, mas não a acompanho de perto. Tenho culpa na hora que digo: “não, só atendo 10 pacientes”.

Engana-se quem acredita que a função do médico é salvar vidas. “A vida é uma doença crônico-degenerativa que, inexoravelmente, leva à morte”. Nós “salvamos” mortes evitáveis, que são, em sua maioria, condições sensíveis à atenção primária.

Que a estrela deste pequenino, que hoje embala nos braços do Rei do Ororubá, nos sirva de guia. Nos fortaleça a qualificar ainda mais nosso serviço, que encontremos nossos argueiros a cada dia, fazendo com amor aquilo que fomos vocados à ação.