“O desespero
No olhar de uma criança
A humanidade
Fecha os olhos pra não ver
Boi com sede bebe lama
Barriga seca não dá sono
Eu não sou dono do mundo
Mas tenho culpa, porque sou
Filho do dono”
Filho do Dono – Petrúcio Amorim
Sexta-feira,
onze e meia. Papéis, caneta, carimbo, tudo em ordem, estou fechando
minha mochila. O estetoscópio ainda está sobre os ombros. Doutor,
ligou um Agente Indígena de Saúde, disse que tem uma criança lá
na aldeia “só respirando”, mas não é da sua área, o senhor
pode atender? Posso, claro.
... Está
demorando, não? Não se preocupe, Doutor, na maioria das vezes é
besteira. Estou ansioso, mesmo assim... Vou ler um pouco, para
distrair... O Acaso é um bicho engraçado, nesse dia estava com um
livro de meu professor, amigo e companheiro, na mochila. As palavras
escritas naquelas linhas falavam de política, mas eu lia, em
verdade, eu escutava ele me dizendo: mantenha a calma, da sua
segurança depende a vida do paciente... era como se ele estivesse
ali, a ansiedade diminuiu. É, estar acompanhado de um amigo nos traz
paz.
Doutor, o
menino “tá roxo”. O que tá acontecendo? Ele taí mole dotô.
Calma, mulher, como ele está e desde quando? O minino tá sem querê
cumê e mole, derde sanoite. Ele teve febre ou tá fazendo cocô
mole? Hem-hem. Tem certeza que não? E ele está “mole” só faz
um dia? Ele é assim mermo. Qual a idade dele? Cinco meise. Tudo
isso? alguém pesou ele, ele é tão pequenininho. Três quilos e
seicentos, doutor. Meu Deus!
Coloque ele nessa mesa e tire a roupinha.
A criança está largada na mesa de exames, o
pescoço virado para direita. Olhar no vazio. Um olhar desesperado,
de quem sequer consegue chorar para pedir socorro
Fontanela deprimida.
Olhos fundos, encovados.
Ele respira, mas muito rápido.
Sua pele está quente e enrugada.
Sua barriga, escavada. Sobra-lhe pele. Uma
palpação leve e escorre uma evacuação amarelada, líquida e muito
fétida.
A senhora disse que ele não estava com
diarreia! Que não fazia cocô mole. Far tempo que o cocô dele é
assim, dotô. Me dou conta que, nessa hora, culpar a mãe não ajuda
em nada.
Faço uma
prega no abdome, mas a pele não desfaz aquela prega.
Ele está
mamando? Hem-hem. Parou quando? Cum treis dia. Por quê? Num tinha
leite no meu peito.
Quantos anos você tem? Dizessei. Só tem ele?
Nã, tem um de doi ano e tô esperando oto. O que é que você está
dando para ele comer? Mamadêra, eu dirmancho o leite e ele toma. Fir
essa mamadêra onti, mar ele num tumô nada. Doutor, pelo amor de
Deus! Um cheiro azedo se espalha pela sala. Na mamadeira, sobrenada
uma grossa camada de leite “talhado”, encimado por bolor.
Não, não
sou médico sem fronteiras. Nem esta situação aconteceu na distante
África. Esse atendimento se deu há menos de um mês, no interior de
Pernambuco. Infelizmente a humanidade continua “fechando os olhos
para não ver”. Não ver que as doenças prevalentes da infância
continuam sendo negligenciadas, principalmente quando acometem
minorias. Não ver que elas continuam ceifando os dias de “uma vida
toda pela frente”.
O
desespero no olhar daquela criança está fotografado em minha
retina. Não consigo lembrar daquela cena sem embargar a voz, sem
encher os olhos de lágrimas. Não adianta, “meu coração é de
sangue e ele sangra”.
Iniciamos
o tratamento, em seis horas a criança começa a melhorar. Despertou,
já consegue beber água avidamente, alimenta-se. Mas sua diarreia
continua. Em 24h continua cansada, taquipnéica. Encaminhada para o
hospital de referência, é internada em leito intensivo. Após sete
dias na UTI, vem a notícia. Seus pequenos rins não suportaram, sua
luta desesperada chegou ao fim. Descansa em paz, o pequeno índio,
nos braços do Rei do Ororubá.
Nós
temos uma tendência incrível a procurar culpados, e essa inclinação
é muito maior para encontrar o argueiro nos olhos dos outros. “Essa
mãe é um a irresponsável”! Hipócritas, não sabemos tirar a
trave de nosso próprio olho! Já diz a letra da música que inicia
esta crônica: “eu não sou dono do mundo, mas tenho culpa porque
sou filho do dono”. Tenho culpa na hora que oriento de forma
superficial o aleitamento materno, tenho culpa na hora que identifico
uma criança de baixo peso, notifico, mas não a acompanho de perto.
Tenho culpa na hora que digo: “não, só atendo 10 pacientes”.
Engana-se
quem acredita que a função do médico é salvar vidas. “A vida é
uma doença crônico-degenerativa que, inexoravelmente, leva à
morte”. Nós “salvamos” mortes evitáveis, que são, em
sua maioria, condições sensíveis à atenção primária.
Que a
estrela deste pequenino, que hoje embala nos braços do Rei do
Ororubá, nos sirva de guia. Nos fortaleça a qualificar ainda mais
nosso serviço, que encontremos nossos argueiros a cada dia, fazendo
com amor aquilo que fomos vocados à ação.