sábado, 8 de março de 2014

Dia da menina

Bom dia, Liz

Hoje é 08 de março, faltam apenas 30 dias para sua chegada. Hoje também é o dia internacional da mulher. Há quatro anos seu pai escrevia um texto nesta mesma data. Eu estava de plantão e a primeira paciente do dia (às 01h da manhã) era uma mulher, agredida covardemente pelo marido. Em verdade, minha filha, todas as agressões contra as mulheres são covardes, "em mulher não se bate nem com uma flor". 

Infelizmente aquele não foi o único caso de violência contra a mulher daquele plantão. Cheguei em casa arrasado. Pensei que tivesse voltado a um tempo anterior ao dos homens das cavernas. Ligo a televisão para me distrair, a notícia do momento é a do goleiro Bruno defendendo um colega do flamengo que havia agredido sua esposa numa festa: “quem nunca brigou com a mulher? quem nunca saiu no tapa com a mulher? Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher, xará”. Menos de um ano depois o Xará matou a amante. Acho que ele ainda está preso, tomara que esteja. Não sei, não vejo mais televisão. Por falar nisso, eu e sua mãe decidimos que não vamos ter televisão em casa. 

Ah sua mãe! Ela nunca esteve mais linda! A gravidez, ao contrário do que as mentes perversas insistem em pregar, tem provocado mudanças incríveis e positivas na sua mãe. Além de mais bonita, ela também está mais saudável e mais feliz. 

Sabe Liz, a gravidez de sua mãe me fez refletir muito sobre a força bela da mulher. Na mitologia grega, o titã Atlas foi condenado a carregar o mundo em seus ombros e ele o faz com muito sofrimento. Já as mulheres, minha filha, vocês foram escolhidas a carregar toda a humanidade em seus ventres, esse sim é um fardo pesado, e vocês o carregam com um sorriso no rosto. A mesma humanidade que vocês carregam é a que lhes tranca em uma fábrica para morrer carbonizadas. Os homens tem a mania de cuspir o prato.  

Faltam 30 dias para você chegar a esse mundo minha filha, provavelmente ele não vai mudar nesse tempo. Mas nós podemos mudar. Queremos que você faça parte desta mudança. A solução é tão simples - difícil é ser tão simples assim - quem nos ensinou foi uma outra grande mulher, sua avó: 
"Quem recebe amor, sabe dar amor".

Com amor, seu pai.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Colecionadores de Pôr-do-Sol


“A vida é a arte do encontro
Embora haja tantos desencontros pela vida”
Vinícius de Moraes

“Amor à primeira vista”, “cara metade”, “alma gêmea”... tudo isso soa clichê, principalmente num mundo onde a fragilidade e o vazio dos relacionamentos amorosos, bem como a futilidade com que se tem tratado as relações humanas, nos fazem desacreditar desse tal, o “amor”.

Platão, em seu Banquete, descreve o mito dos Andróginos, segundo o qual no princípio os homens eram seres completos, envaideceram-se de sua perfeição e começaram a invejar a imortalidade dos deuses. Zeus, enfurecido, castigou-os cindindo o homem da mulher, sua sina seria vagar pelo mundo à procura dessa sua outra metade.

Meus amigos, o mundo é muito grande, sua alma-gêmea pode ser qualquer um dos 7 bilhões de habitantes da face da terra. Quem procura não acha. Foi justamente quando desisti de procurar que encontro Eneline. Conversamos algumas horas sobre medicina, estágios, planos, futuro... afinal, vivíamos situações semelhantes. Isso passou.

O danado é que parece que Zeus queria nos (re)unir pelo acaso, foi quando nos encontramos, famintos, numa noite fria paulistana. Enquanto jantávamos, a noite virou madrugada, e a madrugada se fez manhã. Foram treze horas ininterruptas de conversa. E nós só nos conhecíamos a dois dias.

Eu custava a acreditar que aquela era a “metade arrancada de mim”, afinal, esse papo de alma gêmea soava cafona. Até que ela me diz: “as vezes eu penso que as almas falam línguas diferentes, por isso é tão reconfortante quando a gente encontra alguém que fala nossa língua”.

É meus caros, a verdade é que a gente vive numa babilônia de almas, muitas vezes vivemos uma vida que não é a nossa, justamente porque não sabemos nos escutar, consequentemente, nunca identificamos uma alma que fale a nossa língua.

Mas a nossa história estava fadada a terminar ali, Nine viria a Recife e eu voltaria a Natal, afinal, o poeta de Moraes já disse que “há muitos desencontros pela vida”. Dentre os 7 bilhões de almas eu tinha completado a minha “sina”, mas eu iria perde-la de novo.

Foi quando li Khalil Gibran: “se o amor chamar, segui-o. Por mais que os seus caminhos sejam agrestes e escarpados”. E eu fui, fui para o agreste pernambucano, trabalhar com indígenas, mudar todos os meus planos, separar-me de minha família e amigos. Fui porque essa era minha vida verdadeira, e ela estava passando ao meu lado sem que eu pudesse vivê-la. Valeu a pena pescar essa ilusão.

Portanto, meus amigos, se nessa babilônia de almas você encontrar alguém que fale sua língua por treze horas seguidas, sem nenhuma intenção, segui-o e sai por aí colecionando pores do sol. 


domingo, 25 de agosto de 2013

Era um Posto muito engraçado

Falta maca
Falta mesa
Faltam cadeiras
E o médico está lá

Não tem banheiro
Nem pia
Falta luz
Falta água
Mas o médico continua lá

Falta transporte
Falta receituário
Falta sumário de urina
Falta hemograma
Falta medicação
Mas o médico continua aqui

Falta apoio
Falta vontade
Falta respeito
Falta vergonha
Falta dignidade
Falta humanidade
Por que ainda estou aqui?

Mas não faltam pacientes
Nem falta o amor
Nem a cumplicidade
DELES
Por
Isso
Continuo
Aqui

Não falto
Falta O Posto
Isso
Definitivamente
Não é muito engraçado

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"Por que você me esquece e some?"




Minha profissão é linda. Tenho oportunidade de acompanhar uma pessoa poucas semanas após a sua concepção, ouvir seu coração bater pela primeira vez e alguns meses depois conhecer o seus olhos e a ouvir chorar. Tenho a oportunidade de conhecer pessoas que viveram mais de 100 anos, e continuam vendo beleza na vida. Tenho a oportunidade de interferir, e orientar e ver aquela pessoa etilista, agressiva, emagrecida parando de beber e se reconciliando com sua família e consigo mesma. Tenho a oportunidade de aliviar o sofrimento as vezes. E consolar. Amo tudo isso que a medicina me proporciona. Amo poder cuidar de pessoas humildes. Simples. Agricultores de mãos calejadas. Senhoras queimadas do sol do sertão. Famílias enormes. Amo poder aprender com eles o que não lemos nos livros. Gosto de entrar nas casas, conhecer a realidade deles, tomar o café feito com tanto zelo. Gosto do carinho e admiração que existe entre nós. Tenho 25 anos. Tenho disposição para subir as serras, atravessar os rios, levar chuva, encarar o frio. Estou disposta a superar as dificuldades e atender meus pacientes da melhor maneira possível.






Mas quando você percebe que maneiras melhores existem, e SÃO POSSÍVEIS, mas falta interesse/vontade política para resolver o problema, dói. Porque pior que atender em lugares sem luz, sem água, sem sabão, sem maca, sem birô, sem acessibilidade, sem banheiro ou com morcegos... é sentir-se sozinho e achar que ninguém se importa. Seus "superiores", muitos gestores, prefeitos, governadores, o ministro da saúde, a presidente... Eles querem os números, as estatísticas, as metas alcançadas. Mas com o dia a dia, as dificuldades, ninguém se importa. As vezes nem algumas pessoas que trabalham ali, perto de você se importam! Mas afinal, se você escolheu trabalhar com essas pessoas, com essa realidade - você tem que aceitar as ( a falta de) condições (?)  Por que as comunidades rurais e carentes, por que as pessoas humildes precisam aceitar serem atendidos em qualquer lugar? Por que as consultas devem durar menos de 15 minutos? Se eu me recuso a atender em lugares sem condições, como fica a população? Se eu aceito atender, como tenho feito, será que nada nunca vai mudar? Até quando nossa boa vontade vai servir de desculpa para o descaso dos governantes?


"... Quando a gente gosta é claro que a gente cuida..."


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Professores e educadores

Você chega para realizar atendimentos numa aldeia. Não tem posto. Seus atendimentos são realizados na escola. Todas as crianças se levantam e saem da sala de aula. Mais uma vez sua consciência fica pesada, afinal, as crianças ficarão sem aula porque você está ali.


Qualquer professor que "dá aulas", se daria por satisfeito, fecharia sua malinha e de seus alunos e comemoraria que poderia chegar mais cedo em casa. Ou antes, nem iria trabalhar, determinaria dia branco.

Mas acontece algo estranho, as crianças dão a volta e vão para trás da escola, seguindo alguém. Ai você descobre que não se trata de uma simples professora, você se surpreende por descobrir ali a essência do educador. Eles estão indo aprender juntos a conduzir uma horta. Os alunos trazem os conhecimentos da tradição passada por seus pais, a educadora disponibiliza-lhes instrumentos e outros conhecimentos. Erram juntos. Acertam juntos.


Mas as surpresas não acabam por aqui. A agente indígena de saúde, rindo-se do meu contentamento (espanto), diz: "Doutor, você não viu nada, eles escreveram um livro." Quando perguntei a eles: "Quem escreveu o livro?", na expectativa que me apontassem a professora, mas logo eles assumiram a autoria da obra: "Eu, eu, eu, eu", em uníssono.
 





Que surpresas mais o povo xukuru nos reserva?

Cada vez mais feliz e inspirado para trabalhar com esse povo!



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Menina da Porteira

Para estruturar um processo de ensino-aprendizagem é mister elaborar objetivos, metodologia, plano de ensino... enfim, preparar um currículo. Mas o acaso é um desses bichos esquisitos que nos pregam peças, e ele nos impõe situações que se mostram muito mais pedagógicas que qualquer lição, tutoria ou discussão de caso possa ensinar.

Em seu primeiro dia de aula, a estudante Natália teve que tirar o pé do corredor do hospital, botar o pé na estrada de terra e abrir a porteira para poder chegar no seu local de atendimento. Nessa hora, o contato com o ambiente Rural nos tira do pedestal que o inconsciente coletivo coloca o médico, o que acaba se estendendo aos estudantes.



Na contra-mão do esteriótipo e da (nossa) avaliação preconceituosa da mocinha da capital, ela levantou a poeira da estrada e abriu as portas dos caminhos para colocar em prática tudo o que já sabe, conhecer novas realidades e experimentar tudo o que esse novo mundo tem pra oferecer.

Seja bem vinda, Dra Natália.

          

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Impressões

"Mainha, o tempo passa e levo nesse desafio
A natureza chega chora a perguntar
Se os peixinhos sentem saudade do rio
Se a lavandeira tem motivos pra cantar

Meu velho Ipojuca, teu espelho já não brilha
E nessa trilha tu parece até comigo
Lençol de pedra e sonho de baronesa
Nessa tristeza aceitando teu castigo"
Meu velho Ipojuca - Petrúcio Amorim



“É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi”, estranhava Caetano Veloso ao deparar-se com São Paulo. Também nada entendia eu ao chegar no agreste pernambucano. Por que essas pessoas escolheram esse cenário árido para morar? Por que houve tanto derramamento de sangue por essa terra sem vida?

Ah, Narciso, você continua achando feio o que não é espelho! Nascido e “mal criado” em "outro sonho feliz de cidade", ali onde a foz do rio é tão larga que é difícil imaginar quão minguado é seu trajeto, fica difícil entender o fenômeno "seca" quando a conhecemos apenas pelas, digamos, preconceituosas, reportagens do Jornal Nacional.  

Até que chove (menos do que a média esperada) durante uma semana e você entende: "a convivência com a seca é possível"!


E a chuva, ou antes, a presença de água, muda tudo! De forma impressionante diminuiu o número de atendimentos por queixas relacionadas a síndromes ansiosas, bem como a demanda pelos amados "remédios controlados" e receitinhas azuis. Tenho que concordar com o diagnóstico da minha companheira Eneline, ao deparar-se com uma paciente sua no campo: "Mas o que tirava o sono deles era a seca. O que eles precisavam era de CHUVA. Santo remédio". A conclusão é empírica, mas nem precisa de validação científica.  


Em tempos de tantas discussões sobre mais médicos pra lá, menos médicos pra cá, têm-se a ideia mágica de que basta nossa onipresença e está tudo resolvido. Te respondo, como médico rural: pouco gelo podemos enxugar onde falta tudo, inclusive médicos. Proponho então o programa Mais Chuva, Mais Alegria, Mais Comida, Menos Rivotril, Menos Desnutrição. 

Que os manda-chuva da mídia e de Brasília voltem a se preocupar com questões mais centrais na vida da população, porque muito mais do que Mais Médicos, o sertanejo precisa de Mais Água.

Há muito mais entre o povo e o governo do que possa resolver nossa vã medicina.