domingo, 25 de agosto de 2013

Era um Posto muito engraçado

Falta maca
Falta mesa
Faltam cadeiras
E o médico está lá

Não tem banheiro
Nem pia
Falta luz
Falta água
Mas o médico continua lá

Falta transporte
Falta receituário
Falta sumário de urina
Falta hemograma
Falta medicação
Mas o médico continua aqui

Falta apoio
Falta vontade
Falta respeito
Falta vergonha
Falta dignidade
Falta humanidade
Por que ainda estou aqui?

Mas não faltam pacientes
Nem falta o amor
Nem a cumplicidade
DELES
Por
Isso
Continuo
Aqui

Não falto
Falta O Posto
Isso
Definitivamente
Não é muito engraçado

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"Por que você me esquece e some?"




Minha profissão é linda. Tenho oportunidade de acompanhar uma pessoa poucas semanas após a sua concepção, ouvir seu coração bater pela primeira vez e alguns meses depois conhecer o seus olhos e a ouvir chorar. Tenho a oportunidade de conhecer pessoas que viveram mais de 100 anos, e continuam vendo beleza na vida. Tenho a oportunidade de interferir, e orientar e ver aquela pessoa etilista, agressiva, emagrecida parando de beber e se reconciliando com sua família e consigo mesma. Tenho a oportunidade de aliviar o sofrimento as vezes. E consolar. Amo tudo isso que a medicina me proporciona. Amo poder cuidar de pessoas humildes. Simples. Agricultores de mãos calejadas. Senhoras queimadas do sol do sertão. Famílias enormes. Amo poder aprender com eles o que não lemos nos livros. Gosto de entrar nas casas, conhecer a realidade deles, tomar o café feito com tanto zelo. Gosto do carinho e admiração que existe entre nós. Tenho 25 anos. Tenho disposição para subir as serras, atravessar os rios, levar chuva, encarar o frio. Estou disposta a superar as dificuldades e atender meus pacientes da melhor maneira possível.






Mas quando você percebe que maneiras melhores existem, e SÃO POSSÍVEIS, mas falta interesse/vontade política para resolver o problema, dói. Porque pior que atender em lugares sem luz, sem água, sem sabão, sem maca, sem birô, sem acessibilidade, sem banheiro ou com morcegos... é sentir-se sozinho e achar que ninguém se importa. Seus "superiores", muitos gestores, prefeitos, governadores, o ministro da saúde, a presidente... Eles querem os números, as estatísticas, as metas alcançadas. Mas com o dia a dia, as dificuldades, ninguém se importa. As vezes nem algumas pessoas que trabalham ali, perto de você se importam! Mas afinal, se você escolheu trabalhar com essas pessoas, com essa realidade - você tem que aceitar as ( a falta de) condições (?)  Por que as comunidades rurais e carentes, por que as pessoas humildes precisam aceitar serem atendidos em qualquer lugar? Por que as consultas devem durar menos de 15 minutos? Se eu me recuso a atender em lugares sem condições, como fica a população? Se eu aceito atender, como tenho feito, será que nada nunca vai mudar? Até quando nossa boa vontade vai servir de desculpa para o descaso dos governantes?


"... Quando a gente gosta é claro que a gente cuida..."


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Professores e educadores

Você chega para realizar atendimentos numa aldeia. Não tem posto. Seus atendimentos são realizados na escola. Todas as crianças se levantam e saem da sala de aula. Mais uma vez sua consciência fica pesada, afinal, as crianças ficarão sem aula porque você está ali.


Qualquer professor que "dá aulas", se daria por satisfeito, fecharia sua malinha e de seus alunos e comemoraria que poderia chegar mais cedo em casa. Ou antes, nem iria trabalhar, determinaria dia branco.

Mas acontece algo estranho, as crianças dão a volta e vão para trás da escola, seguindo alguém. Ai você descobre que não se trata de uma simples professora, você se surpreende por descobrir ali a essência do educador. Eles estão indo aprender juntos a conduzir uma horta. Os alunos trazem os conhecimentos da tradição passada por seus pais, a educadora disponibiliza-lhes instrumentos e outros conhecimentos. Erram juntos. Acertam juntos.


Mas as surpresas não acabam por aqui. A agente indígena de saúde, rindo-se do meu contentamento (espanto), diz: "Doutor, você não viu nada, eles escreveram um livro." Quando perguntei a eles: "Quem escreveu o livro?", na expectativa que me apontassem a professora, mas logo eles assumiram a autoria da obra: "Eu, eu, eu, eu", em uníssono.
 





Que surpresas mais o povo xukuru nos reserva?

Cada vez mais feliz e inspirado para trabalhar com esse povo!



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Menina da Porteira

Para estruturar um processo de ensino-aprendizagem é mister elaborar objetivos, metodologia, plano de ensino... enfim, preparar um currículo. Mas o acaso é um desses bichos esquisitos que nos pregam peças, e ele nos impõe situações que se mostram muito mais pedagógicas que qualquer lição, tutoria ou discussão de caso possa ensinar.

Em seu primeiro dia de aula, a estudante Natália teve que tirar o pé do corredor do hospital, botar o pé na estrada de terra e abrir a porteira para poder chegar no seu local de atendimento. Nessa hora, o contato com o ambiente Rural nos tira do pedestal que o inconsciente coletivo coloca o médico, o que acaba se estendendo aos estudantes.



Na contra-mão do esteriótipo e da (nossa) avaliação preconceituosa da mocinha da capital, ela levantou a poeira da estrada e abriu as portas dos caminhos para colocar em prática tudo o que já sabe, conhecer novas realidades e experimentar tudo o que esse novo mundo tem pra oferecer.

Seja bem vinda, Dra Natália.