sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Colecionadores de Pôr-do-Sol


“A vida é a arte do encontro
Embora haja tantos desencontros pela vida”
Vinícius de Moraes

“Amor à primeira vista”, “cara metade”, “alma gêmea”... tudo isso soa clichê, principalmente num mundo onde a fragilidade e o vazio dos relacionamentos amorosos, bem como a futilidade com que se tem tratado as relações humanas, nos fazem desacreditar desse tal, o “amor”.

Platão, em seu Banquete, descreve o mito dos Andróginos, segundo o qual no princípio os homens eram seres completos, envaideceram-se de sua perfeição e começaram a invejar a imortalidade dos deuses. Zeus, enfurecido, castigou-os cindindo o homem da mulher, sua sina seria vagar pelo mundo à procura dessa sua outra metade.

Meus amigos, o mundo é muito grande, sua alma-gêmea pode ser qualquer um dos 7 bilhões de habitantes da face da terra. Quem procura não acha. Foi justamente quando desisti de procurar que encontro Eneline. Conversamos algumas horas sobre medicina, estágios, planos, futuro... afinal, vivíamos situações semelhantes. Isso passou.

O danado é que parece que Zeus queria nos (re)unir pelo acaso, foi quando nos encontramos, famintos, numa noite fria paulistana. Enquanto jantávamos, a noite virou madrugada, e a madrugada se fez manhã. Foram treze horas ininterruptas de conversa. E nós só nos conhecíamos a dois dias.

Eu custava a acreditar que aquela era a “metade arrancada de mim”, afinal, esse papo de alma gêmea soava cafona. Até que ela me diz: “as vezes eu penso que as almas falam línguas diferentes, por isso é tão reconfortante quando a gente encontra alguém que fala nossa língua”.

É meus caros, a verdade é que a gente vive numa babilônia de almas, muitas vezes vivemos uma vida que não é a nossa, justamente porque não sabemos nos escutar, consequentemente, nunca identificamos uma alma que fale a nossa língua.

Mas a nossa história estava fadada a terminar ali, Nine viria a Recife e eu voltaria a Natal, afinal, o poeta de Moraes já disse que “há muitos desencontros pela vida”. Dentre os 7 bilhões de almas eu tinha completado a minha “sina”, mas eu iria perde-la de novo.

Foi quando li Khalil Gibran: “se o amor chamar, segui-o. Por mais que os seus caminhos sejam agrestes e escarpados”. E eu fui, fui para o agreste pernambucano, trabalhar com indígenas, mudar todos os meus planos, separar-me de minha família e amigos. Fui porque essa era minha vida verdadeira, e ela estava passando ao meu lado sem que eu pudesse vivê-la. Valeu a pena pescar essa ilusão.

Portanto, meus amigos, se nessa babilônia de almas você encontrar alguém que fale sua língua por treze horas seguidas, sem nenhuma intenção, segui-o e sai por aí colecionando pores do sol. 


domingo, 25 de agosto de 2013

Era um Posto muito engraçado

Falta maca
Falta mesa
Faltam cadeiras
E o médico está lá

Não tem banheiro
Nem pia
Falta luz
Falta água
Mas o médico continua lá

Falta transporte
Falta receituário
Falta sumário de urina
Falta hemograma
Falta medicação
Mas o médico continua aqui

Falta apoio
Falta vontade
Falta respeito
Falta vergonha
Falta dignidade
Falta humanidade
Por que ainda estou aqui?

Mas não faltam pacientes
Nem falta o amor
Nem a cumplicidade
DELES
Por
Isso
Continuo
Aqui

Não falto
Falta O Posto
Isso
Definitivamente
Não é muito engraçado

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"Por que você me esquece e some?"




Minha profissão é linda. Tenho oportunidade de acompanhar uma pessoa poucas semanas após a sua concepção, ouvir seu coração bater pela primeira vez e alguns meses depois conhecer o seus olhos e a ouvir chorar. Tenho a oportunidade de conhecer pessoas que viveram mais de 100 anos, e continuam vendo beleza na vida. Tenho a oportunidade de interferir, e orientar e ver aquela pessoa etilista, agressiva, emagrecida parando de beber e se reconciliando com sua família e consigo mesma. Tenho a oportunidade de aliviar o sofrimento as vezes. E consolar. Amo tudo isso que a medicina me proporciona. Amo poder cuidar de pessoas humildes. Simples. Agricultores de mãos calejadas. Senhoras queimadas do sol do sertão. Famílias enormes. Amo poder aprender com eles o que não lemos nos livros. Gosto de entrar nas casas, conhecer a realidade deles, tomar o café feito com tanto zelo. Gosto do carinho e admiração que existe entre nós. Tenho 25 anos. Tenho disposição para subir as serras, atravessar os rios, levar chuva, encarar o frio. Estou disposta a superar as dificuldades e atender meus pacientes da melhor maneira possível.






Mas quando você percebe que maneiras melhores existem, e SÃO POSSÍVEIS, mas falta interesse/vontade política para resolver o problema, dói. Porque pior que atender em lugares sem luz, sem água, sem sabão, sem maca, sem birô, sem acessibilidade, sem banheiro ou com morcegos... é sentir-se sozinho e achar que ninguém se importa. Seus "superiores", muitos gestores, prefeitos, governadores, o ministro da saúde, a presidente... Eles querem os números, as estatísticas, as metas alcançadas. Mas com o dia a dia, as dificuldades, ninguém se importa. As vezes nem algumas pessoas que trabalham ali, perto de você se importam! Mas afinal, se você escolheu trabalhar com essas pessoas, com essa realidade - você tem que aceitar as ( a falta de) condições (?)  Por que as comunidades rurais e carentes, por que as pessoas humildes precisam aceitar serem atendidos em qualquer lugar? Por que as consultas devem durar menos de 15 minutos? Se eu me recuso a atender em lugares sem condições, como fica a população? Se eu aceito atender, como tenho feito, será que nada nunca vai mudar? Até quando nossa boa vontade vai servir de desculpa para o descaso dos governantes?


"... Quando a gente gosta é claro que a gente cuida..."


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Professores e educadores

Você chega para realizar atendimentos numa aldeia. Não tem posto. Seus atendimentos são realizados na escola. Todas as crianças se levantam e saem da sala de aula. Mais uma vez sua consciência fica pesada, afinal, as crianças ficarão sem aula porque você está ali.


Qualquer professor que "dá aulas", se daria por satisfeito, fecharia sua malinha e de seus alunos e comemoraria que poderia chegar mais cedo em casa. Ou antes, nem iria trabalhar, determinaria dia branco.

Mas acontece algo estranho, as crianças dão a volta e vão para trás da escola, seguindo alguém. Ai você descobre que não se trata de uma simples professora, você se surpreende por descobrir ali a essência do educador. Eles estão indo aprender juntos a conduzir uma horta. Os alunos trazem os conhecimentos da tradição passada por seus pais, a educadora disponibiliza-lhes instrumentos e outros conhecimentos. Erram juntos. Acertam juntos.


Mas as surpresas não acabam por aqui. A agente indígena de saúde, rindo-se do meu contentamento (espanto), diz: "Doutor, você não viu nada, eles escreveram um livro." Quando perguntei a eles: "Quem escreveu o livro?", na expectativa que me apontassem a professora, mas logo eles assumiram a autoria da obra: "Eu, eu, eu, eu", em uníssono.
 





Que surpresas mais o povo xukuru nos reserva?

Cada vez mais feliz e inspirado para trabalhar com esse povo!



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Menina da Porteira

Para estruturar um processo de ensino-aprendizagem é mister elaborar objetivos, metodologia, plano de ensino... enfim, preparar um currículo. Mas o acaso é um desses bichos esquisitos que nos pregam peças, e ele nos impõe situações que se mostram muito mais pedagógicas que qualquer lição, tutoria ou discussão de caso possa ensinar.

Em seu primeiro dia de aula, a estudante Natália teve que tirar o pé do corredor do hospital, botar o pé na estrada de terra e abrir a porteira para poder chegar no seu local de atendimento. Nessa hora, o contato com o ambiente Rural nos tira do pedestal que o inconsciente coletivo coloca o médico, o que acaba se estendendo aos estudantes.



Na contra-mão do esteriótipo e da (nossa) avaliação preconceituosa da mocinha da capital, ela levantou a poeira da estrada e abriu as portas dos caminhos para colocar em prática tudo o que já sabe, conhecer novas realidades e experimentar tudo o que esse novo mundo tem pra oferecer.

Seja bem vinda, Dra Natália.

          

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Impressões

"Mainha, o tempo passa e levo nesse desafio
A natureza chega chora a perguntar
Se os peixinhos sentem saudade do rio
Se a lavandeira tem motivos pra cantar

Meu velho Ipojuca, teu espelho já não brilha
E nessa trilha tu parece até comigo
Lençol de pedra e sonho de baronesa
Nessa tristeza aceitando teu castigo"
Meu velho Ipojuca - Petrúcio Amorim



“É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi”, estranhava Caetano Veloso ao deparar-se com São Paulo. Também nada entendia eu ao chegar no agreste pernambucano. Por que essas pessoas escolheram esse cenário árido para morar? Por que houve tanto derramamento de sangue por essa terra sem vida?

Ah, Narciso, você continua achando feio o que não é espelho! Nascido e “mal criado” em "outro sonho feliz de cidade", ali onde a foz do rio é tão larga que é difícil imaginar quão minguado é seu trajeto, fica difícil entender o fenômeno "seca" quando a conhecemos apenas pelas, digamos, preconceituosas, reportagens do Jornal Nacional.  

Até que chove (menos do que a média esperada) durante uma semana e você entende: "a convivência com a seca é possível"!


E a chuva, ou antes, a presença de água, muda tudo! De forma impressionante diminuiu o número de atendimentos por queixas relacionadas a síndromes ansiosas, bem como a demanda pelos amados "remédios controlados" e receitinhas azuis. Tenho que concordar com o diagnóstico da minha companheira Eneline, ao deparar-se com uma paciente sua no campo: "Mas o que tirava o sono deles era a seca. O que eles precisavam era de CHUVA. Santo remédio". A conclusão é empírica, mas nem precisa de validação científica.  


Em tempos de tantas discussões sobre mais médicos pra lá, menos médicos pra cá, têm-se a ideia mágica de que basta nossa onipresença e está tudo resolvido. Te respondo, como médico rural: pouco gelo podemos enxugar onde falta tudo, inclusive médicos. Proponho então o programa Mais Chuva, Mais Alegria, Mais Comida, Menos Rivotril, Menos Desnutrição. 

Que os manda-chuva da mídia e de Brasília voltem a se preocupar com questões mais centrais na vida da população, porque muito mais do que Mais Médicos, o sertanejo precisa de Mais Água.

Há muito mais entre o povo e o governo do que possa resolver nossa vã medicina.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Sentimento


Triste com toda essa confusão de "mais médicos". Triste pela população desassistida, triste pela falta de compromisso/descaso do governo que pinta os médicos como fdp , triste com aqueles colegas que de fato são fdp, triste com a hipocrisia dos outros profissionais que gritam que médico é playboy e tem mais que ir para o interior, quando eles mesmos nunca na vida abririam mão do conforto do seu apartamento para atravessar um rio e subir uma serra para atender alguém...

domingo, 7 de abril de 2013

Vamos faturar um milhão

Mas o Brasil vai fica rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão”
Que país é esse? - Legião Urbana

Os brasileiros somos um povo alienado politicamente. Exemplo disso é o retrocesso que damos a passos largos no âmbito dos Direitos Humanos. Não falo isso somente em relação ao caso do Sr Marco Feliciano, que além de racista e homofóbico, mais me parece um fariseu em termos de cristianismo. Mas correm, em rios pútridos por debaixo do congresso nacional, muito mais casos de desrespeito aos nossos Direitos. Um deles é o Projeto de Emenda à Constituição 215, de 2000: a PEC 215.

Contextualizando o leitor, a Constituição Federal, a grande conquista de 1988, em seu Art. 231 afirma que “São reconhecidos aos índios […] os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-Ias, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Mesmo reconhecidas e demarcadas por lei, o direito à terra aos indígenas tem sido marcado por grandes disputas entre os posseiros e os indígenas, causando muito derramamento de sangue. Exemplo disso foi o assassinato do Cacique Xicão Xukuru, em maio de 1998.

Qual o retrocesso da PEC 215, ela almeja retirar da União a competência da demarcação das terras indígenas, trazendo-a para competência exclusiva do Congresso Nacional. Não só isso, o texto ainda traz que o Congresso Nacional deve ratificar, corrigir, as demarcações já homologadas. O que preocupa em tudo isso? Existe uma forte pressão por parte da Bancada Ruralista, em sua imensa ganância, em usurpar as terras indígenas, com o discurso de que são terras improdutivas: “é muita terra para pouco índio”.

O Congresso pretende remarcar as terras das minorias indígenas, possibilitando o usufruto dessas terras pelos majoritários do agronegócio, tudo isso em prol do “desenvolvimento do país”. Mas tudo isso beneficiaria a quem? Para lucro de quem? Já estava certo o poeta, ou profeta, Renato Russo que dizia “Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão”. A PEC 215 é o maior exemplo de que “Ninguém respeita a Constituição/ Mas todos acreditam no futuro da nação”.

Alguns dizem: você não deveria se meter nisso. Por isso volto a afirmar: “os brasileiros somos um povo alienado politicamente”. Enquanto sabemos tudo o que se passa entre Lívia, Morena e Teo na novela, andamos “tão distraídos, sem perceber que somos subtraídos, em tenebrosas transações”.
Exercendo meu papel enquanto cidadão, também exerço meu dever enquanto médico, pois pactuamos no WONCA que os “Profissionais da saúde têm o dever de defender políticas e programas que apontarão os determinantes sociais, ambientais e econômicos de maneira a aprimorar o estado de saúde dos Povos Indígenas”.

Que tal, leitor, ir dormir pensando na pergunta: “Que país é esse?”

Bruno Henrique Soares Pessoa

Médico da etnia Xukuru do Ororubá, Pesqueira-PE, Brasil.



sexta-feira, 22 de março de 2013

Minhas Costas Doem

- Dôtora, eu vim aqui hoje porque eu tenho uma dor nas costas, fia de Deus, 
que num melhora com nada nesse mundo! 


Minhas Costas Doem

Doutor, minhas costas doem
De todo o peso que eu carrego do mundo
Eu ajudava meu pai na feira
Carregando tanta caixa de fruta

Doutor minhas costas doem
Meu pai ficou doente e o carreguei nas costas
Doutor minhas costas doem
Meu pai se foi e eu carrego o peso da solidão

Ah, Doutor enxerga essa dor no peito que irradia da alma
Ah, Doutor enxerga que essa dor no peito irradia da alma

Doutor meu coração,
Ultimamente anda batendo tão fraco
Doutor não chove não ,
E essa seca vai rachando por dentro meu coração

Ah, Doutor enxerga essa dor no peito que irradia da alma
Ah, Doutor enxerga que essa dor no peito irradia da alma

Doutor,  vou indo agora
E me perdoe por gastar suas horas

Doutor, suas costas doem?
Doutor, suas costas doem?
Doutor, suas costas doem?



quarta-feira, 20 de março de 2013

Boi com sede bebe lama

“O desespero
No olhar de uma criança
A humanidade
Fecha os olhos pra não ver

Boi com sede bebe lama
Barriga seca não dá sono
Eu não sou dono do mundo
Mas tenho culpa, porque sou
Filho do dono”
Filho do Dono – Petrúcio Amorim

Sexta-feira, onze e meia. Papéis, caneta, carimbo, tudo em ordem, estou fechando minha mochila. O estetoscópio ainda está sobre os ombros. Doutor, ligou um Agente Indígena de Saúde, disse que tem uma criança lá na aldeia “só respirando”, mas não é da sua área, o senhor pode atender? Posso, claro.

... Está demorando, não? Não se preocupe, Doutor, na maioria das vezes é besteira. Estou ansioso, mesmo assim... Vou ler um pouco, para distrair... O Acaso é um bicho engraçado, nesse dia estava com um livro de meu professor, amigo e companheiro, na mochila. As palavras escritas naquelas linhas falavam de política, mas eu lia, em verdade, eu escutava ele me dizendo: mantenha a calma, da sua segurança depende a vida do paciente... era como se ele estivesse ali, a ansiedade diminuiu. É, estar acompanhado de um amigo nos traz paz.

Doutor, o menino “tá roxo”. O que tá acontecendo? Ele taí mole dotô. Calma, mulher, como ele está e desde quando? O minino tá sem querê cumê e mole, derde sanoite. Ele teve febre ou tá fazendo cocô mole? Hem-hem. Tem certeza que não? E ele está “mole” só faz um dia? Ele é assim mermo. Qual a idade dele? Cinco meise. Tudo isso? alguém pesou ele, ele é tão pequenininho. Três quilos e seicentos, doutor. Meu Deus!

Coloque ele nessa mesa e tire a roupinha.
A criança está largada na mesa de exames, o pescoço virado para direita. Olhar no vazio. Um olhar desesperado, de quem sequer consegue chorar para pedir socorro
Fontanela deprimida.
Olhos fundos, encovados.
Ele respira, mas muito rápido.
Sua pele está quente e enrugada.
Sua barriga, escavada. Sobra-lhe pele. Uma palpação leve e escorre uma evacuação amarelada, líquida e muito fétida.

A senhora disse que ele não estava com diarreia! Que não fazia cocô mole. Far tempo que o cocô dele é assim, dotô. Me dou conta que, nessa hora, culpar a mãe não ajuda em nada.
Faço uma prega no abdome, mas a pele não desfaz aquela prega.

Ele está mamando? Hem-hem. Parou quando? Cum treis dia. Por quê? Num tinha leite no meu peito.
Quantos anos você tem? Dizessei. Só tem ele? Nã, tem um de doi ano e tô esperando oto. O que é que você está dando para ele comer? Mamadêra, eu dirmancho o leite e ele toma. Fir essa mamadêra onti, mar ele num tumô nada. Doutor, pelo amor de Deus! Um cheiro azedo se espalha pela sala. Na mamadeira, sobrenada uma grossa camada de leite “talhado”, encimado por bolor.

Não, não sou médico sem fronteiras. Nem esta situação aconteceu na distante África. Esse atendimento se deu há menos de um mês, no interior de Pernambuco. Infelizmente a humanidade continua “fechando os olhos para não ver”. Não ver que as doenças prevalentes da infância continuam sendo negligenciadas, principalmente quando acometem minorias. Não ver que elas continuam ceifando os dias de “uma vida toda pela frente”.

O desespero no olhar daquela criança está fotografado em minha retina. Não consigo lembrar daquela cena sem embargar a voz, sem encher os olhos de lágrimas. Não adianta, “meu coração é de sangue e ele sangra”.

Iniciamos o tratamento, em seis horas a criança começa a melhorar. Despertou, já consegue beber água avidamente, alimenta-se. Mas sua diarreia continua. Em 24h continua cansada, taquipnéica. Encaminhada para o hospital de referência, é internada em leito intensivo. Após sete dias na UTI, vem a notícia. Seus pequenos rins não suportaram, sua luta desesperada chegou ao fim. Descansa em paz, o pequeno índio, nos braços do Rei do Ororubá.

Nós temos uma tendência incrível a procurar culpados, e essa inclinação é muito maior para encontrar o argueiro nos olhos dos outros. “Essa mãe é um a irresponsável”! Hipócritas, não sabemos tirar a trave de nosso próprio olho! Já diz a letra da música que inicia esta crônica: “eu não sou dono do mundo, mas tenho culpa porque sou filho do dono”. Tenho culpa na hora que oriento de forma superficial o aleitamento materno, tenho culpa na hora que identifico uma criança de baixo peso, notifico, mas não a acompanho de perto. Tenho culpa na hora que digo: “não, só atendo 10 pacientes”.

Engana-se quem acredita que a função do médico é salvar vidas. “A vida é uma doença crônico-degenerativa que, inexoravelmente, leva à morte”. Nós “salvamos” mortes evitáveis, que são, em sua maioria, condições sensíveis à atenção primária.

Que a estrela deste pequenino, que hoje embala nos braços do Rei do Ororubá, nos sirva de guia. Nos fortaleça a qualificar ainda mais nosso serviço, que encontremos nossos argueiros a cada dia, fazendo com amor aquilo que fomos vocados à ação.