quarta-feira, 20 de março de 2013

Boi com sede bebe lama

“O desespero
No olhar de uma criança
A humanidade
Fecha os olhos pra não ver

Boi com sede bebe lama
Barriga seca não dá sono
Eu não sou dono do mundo
Mas tenho culpa, porque sou
Filho do dono”
Filho do Dono – Petrúcio Amorim

Sexta-feira, onze e meia. Papéis, caneta, carimbo, tudo em ordem, estou fechando minha mochila. O estetoscópio ainda está sobre os ombros. Doutor, ligou um Agente Indígena de Saúde, disse que tem uma criança lá na aldeia “só respirando”, mas não é da sua área, o senhor pode atender? Posso, claro.

... Está demorando, não? Não se preocupe, Doutor, na maioria das vezes é besteira. Estou ansioso, mesmo assim... Vou ler um pouco, para distrair... O Acaso é um bicho engraçado, nesse dia estava com um livro de meu professor, amigo e companheiro, na mochila. As palavras escritas naquelas linhas falavam de política, mas eu lia, em verdade, eu escutava ele me dizendo: mantenha a calma, da sua segurança depende a vida do paciente... era como se ele estivesse ali, a ansiedade diminuiu. É, estar acompanhado de um amigo nos traz paz.

Doutor, o menino “tá roxo”. O que tá acontecendo? Ele taí mole dotô. Calma, mulher, como ele está e desde quando? O minino tá sem querê cumê e mole, derde sanoite. Ele teve febre ou tá fazendo cocô mole? Hem-hem. Tem certeza que não? E ele está “mole” só faz um dia? Ele é assim mermo. Qual a idade dele? Cinco meise. Tudo isso? alguém pesou ele, ele é tão pequenininho. Três quilos e seicentos, doutor. Meu Deus!

Coloque ele nessa mesa e tire a roupinha.
A criança está largada na mesa de exames, o pescoço virado para direita. Olhar no vazio. Um olhar desesperado, de quem sequer consegue chorar para pedir socorro
Fontanela deprimida.
Olhos fundos, encovados.
Ele respira, mas muito rápido.
Sua pele está quente e enrugada.
Sua barriga, escavada. Sobra-lhe pele. Uma palpação leve e escorre uma evacuação amarelada, líquida e muito fétida.

A senhora disse que ele não estava com diarreia! Que não fazia cocô mole. Far tempo que o cocô dele é assim, dotô. Me dou conta que, nessa hora, culpar a mãe não ajuda em nada.
Faço uma prega no abdome, mas a pele não desfaz aquela prega.

Ele está mamando? Hem-hem. Parou quando? Cum treis dia. Por quê? Num tinha leite no meu peito.
Quantos anos você tem? Dizessei. Só tem ele? Nã, tem um de doi ano e tô esperando oto. O que é que você está dando para ele comer? Mamadêra, eu dirmancho o leite e ele toma. Fir essa mamadêra onti, mar ele num tumô nada. Doutor, pelo amor de Deus! Um cheiro azedo se espalha pela sala. Na mamadeira, sobrenada uma grossa camada de leite “talhado”, encimado por bolor.

Não, não sou médico sem fronteiras. Nem esta situação aconteceu na distante África. Esse atendimento se deu há menos de um mês, no interior de Pernambuco. Infelizmente a humanidade continua “fechando os olhos para não ver”. Não ver que as doenças prevalentes da infância continuam sendo negligenciadas, principalmente quando acometem minorias. Não ver que elas continuam ceifando os dias de “uma vida toda pela frente”.

O desespero no olhar daquela criança está fotografado em minha retina. Não consigo lembrar daquela cena sem embargar a voz, sem encher os olhos de lágrimas. Não adianta, “meu coração é de sangue e ele sangra”.

Iniciamos o tratamento, em seis horas a criança começa a melhorar. Despertou, já consegue beber água avidamente, alimenta-se. Mas sua diarreia continua. Em 24h continua cansada, taquipnéica. Encaminhada para o hospital de referência, é internada em leito intensivo. Após sete dias na UTI, vem a notícia. Seus pequenos rins não suportaram, sua luta desesperada chegou ao fim. Descansa em paz, o pequeno índio, nos braços do Rei do Ororubá.

Nós temos uma tendência incrível a procurar culpados, e essa inclinação é muito maior para encontrar o argueiro nos olhos dos outros. “Essa mãe é um a irresponsável”! Hipócritas, não sabemos tirar a trave de nosso próprio olho! Já diz a letra da música que inicia esta crônica: “eu não sou dono do mundo, mas tenho culpa porque sou filho do dono”. Tenho culpa na hora que oriento de forma superficial o aleitamento materno, tenho culpa na hora que identifico uma criança de baixo peso, notifico, mas não a acompanho de perto. Tenho culpa na hora que digo: “não, só atendo 10 pacientes”.

Engana-se quem acredita que a função do médico é salvar vidas. “A vida é uma doença crônico-degenerativa que, inexoravelmente, leva à morte”. Nós “salvamos” mortes evitáveis, que são, em sua maioria, condições sensíveis à atenção primária.

Que a estrela deste pequenino, que hoje embala nos braços do Rei do Ororubá, nos sirva de guia. Nos fortaleça a qualificar ainda mais nosso serviço, que encontremos nossos argueiros a cada dia, fazendo com amor aquilo que fomos vocados à ação.    

10 comentários:

  1. To sem palavras. Forte, enxuto, concreto. Quase pude tocar no paciente também. Muito tocante, obrigado pelo alerta e pelo lembrete que também sou filho do dono. Estou no aguardo da proxima pubilcação.

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  2. Incrível, pesado, avassalador! Muito obrigada por escrever e compartilhar tantos sentimentos.
    Me tocou bastante, e eu fiquei por alguns instante sem palavras.
    descrição nua, crua e que nos faz pensar e repensar, e mudar
    obrigada, obrigada

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  3. Parabéns pela iniciativa... são pessoas assim que fazem a diferença! Obrigado por compartilhar conosco essa triste e verdadeira realidade. Espero qualquer dia desses poder conhecer o trabalho de vocês de perto.

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  4. Parabéns Dr Bruno, obrigada por dividir o seu olhar conosco.
    De Fato só o dono pode mudar o mundo, mas nós, filhos dEle, muita coisa podemos fazer para mudar esse tipo de realidade.
    Ti espero em Natal para que você possa dividir conosco essa e outras histórias.
    Abraços, Damartine Feitosa.

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  5. Ediva Serrade

    Dizem que chorar nao adianta, mas alivia a alma de quem nada, ou quase nada, pode fazer para mudar certas situacoes. Parabens pelo texto concreto, duro de ler e muito real. Mas cheio de amor tambem. Tanto q cheira a leite podre, cheiro sentido com a alma de quem le com o coracao aberto. Em minhas oracoes, a partir de hoje, vai estar o Dr. Bruno Pessoa, esse homem que se deixou tocar pela dor do outro, para que Deus matenha o seu coracao humano diante da dor e compreensivo diante das limitacoes do outro. Parabens pela vocacao de ser me'dico e cristao.

    Ediva Serrade (Miami/FL, 03/21/13

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  6. Dr. Bruno! Meu aluno há alguns anos...um menino desde sempre carinhoso, preocupado com o outro, com o coração maior que ele mesmo! participante ativo do projeto Leitura além da sala de aula, depois do AMARTE e agora fazendo a diferença entre os menos favorecidos. Que Deu ilumine, proteja e encha de sabedoria seu coração, menino! Fico tão orgulhosa de ter sido sua professora!
    Deixo um oração de proteção para você, onde quer que você esteja.
    Que o sol brilhe cálido sobre teu rosto.
    Que os ventos soprem brandos sobre teus ombros.
    Que as chuvas caiam serenas sobre teus campos e,
    até que de novo te veja, que Deus te guarde na palma da Sua mão.
    Um beijo grande, menino!

    Edna Rangel

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  7. Que Deus o ilumine nesta árdua, mas benéfica jornada, desbravada por poucos que tem sua coragem e dignidade de ajudar ao próximo. Isto mesmo, próximo, tão próximo e quase ninguém enxerga.
    Somente os que se sentem "filho do dono" têm consciência de sua missão.
    Uma grande LUZ estará sempre ao seu lado. Vc veio para fazer a diferença na vida das pessoas!

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  8. “A Diarreia é a segunda maior causa de mortes em crianças abaixo dos cinco anos de idade. É uma doença que não só pode ser prevenida, como é curável”. Essa citação foi tirada do site da Organização Mundial da Saúde (OMS), órgão da Organização das Nações Unidas. Me espanta pensar que diarreia é algo que possa matar. Pense bem, e seja sincero: você já tinha pensado que diarreia mata? Quando nós pensamos em diarreia, tratamos como uma doença trivial, algo que temos depois de comer comida ruim ou coisa assim. Ninguém pensa que diarréia mata. No máximo vai-se ao hospital tomar soro, não é?
    De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), essa doença aparentemente trivial é uma das principais causas de morte, acabando, diariamente, com a vida de centenas de crianças. Hospitais em todo o país estão lotados de crianças com sintomas da doença; pequenas pessoas que, por causa das péssimas condições de saneamento, de alimentação, de condições de vida sub-humanas, acabam internadas com algo que poderia ter sido evitado.
    Em todo o mundo, segundo a OMS, cerca de dois milhões de novos casos de diarreia são registrados. Desses, 1.5 milhões resultam em óbitos. A próxima vez que tiver uma diarreia, esse é um dado para se analisar. Mas o que então acontece que as pessoas nos países mais desenvolvidos não morrem disso? Ou melhor: o que é que mata as pessoas nos países subdesenvolvidos? Vale a pena pensar e refletir!
    O primeiro cacho de políticas necessário para os países de prioridade máxima e alta poderem romper as armadilhas da pobreza envolve o investimento na saúde e na educação. Estes investimentos contribuem para o crescimento econômico, o que se repercute no desenvolvimento humano. Educação, saúde, nutrição, água e saneamento completam-se, contribuindo os investimentos num deles para melhorar os resultados dos outros.

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  9. Bruno, que belo texto. Deu um nó na garganta. Que sensibilidade e precisão no seu relato. Desejo muita força aí pra vocês, foi um prazer conhecê-los em Belém. Vou acompanhar de perto o blog. Forte abraço.

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